O Tribunal da Relação de Lisboa acaba de condenar a TVI ao pagamento de 42 mil euros por não ter distorcido a voz de uma criança de dez anos que revelava ter sido violada por um vizinho adulto. A Relação (que confirmou assim a decisão da primeira instância, da qual a TVI tinha recorrido) entendeu que a entrevista feita pelo canal à criança (uma menina de dez anos) - cujo rosto não era identificável, apenas a voz - atentou contra a "dignidade e intimidade pessoal" da criança.
O caso remonta a 27 de Janeiro de 2002, quando a TVI emitiu uma entrevista com a menor, onde esta, que aparecia com o rosto tapado por um peluche, denunciava um vizinho como presumível violador e afirmava ter sido alvo de abuso. A entrevista foi feita com autorização dos pais. Na reportagem apareceram também, aliás, depoimentos dos familiares da criança, perfeitamente identificados. A peça jornalística mostrava também "aspectos gerais da povoação onde os alegados factos teriam ocorrido", segundo se lê no acórdão a que o DN teve acesso, cujo relator foi o desembargador Varges Gomes.
A então Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) abriu processo e condenou a estação de Queluz de Baixo a uma contra-ordenação de 75 mil euros. A TVI recorreu para o Tribunal de Oeiras, que deu razão à AACS mas baixou a coima para 42 mil euros, decisão que veio agora a ser confirmada pela Relação de Lisboa (para onde a estação dirigida por José Eduardo Moniz tinha recorrido).
Os fundamentos
O desembargador Varges Gomes defende no acórdão que "através da identificação das imagens e pela falta de disfarce sonoro, era possível a quem conhecesse a menor reconhecê-la". A TVI contrapôs, argumentando com o "evidente interesse público da notícia, pois foi denunciada a prática de um tipo de crime gravíssimo" e sublinhou que "não foram violados os direitos fundamentais da menor, pois no local onde os factos ocorreram todas as pessoas tiveram conhecimento do sucedido antes da emissão da reportagem". E, prosseguiu, para todas as outras pessoas será impossível a identificação apenas pela voz. Ou seja, diz a TVI, "a repercussão da notícia em termos de permitir a identificação da menor pelo público em geral foi nula". Mais: a TVI alegou que os pais tinham dado autorização para a entrevista da menor.
Autorização dos pais inválida
Nenhum dos argumentos teve acolhimento no Tribunal da Relação de Lisboa. Os desembargadores começam por sustentar que "o direito à liberdade de expressão e informação não é absoluto" e recordam o artigo 14.º do Estatuto dos Jornalistas, que obriga os jornalistas a "não identificar, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual". Argumentam ainda que a liberdade de programação tem como limites "a dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais e a livre formação da personalidade das crianças e adolescentes". A Relação deixa cair por terra também o argumento da autorização dos pais, sustentando que no caso em questão a autorização não é relevante, dado que não corresponde ao superior interesse da criança. "Consentir na exposição pública de uma filha sexualmente abusada, com dez anos de idade, é inequivocamente atentório da dignidade da menor", sustentam os desembargadores da Relação de Lisboa.
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